A ida no domingo (21) ao Estádio Mestalla, de Valência, para assistir ao jogo entre o time da casa e o Real Madrid pelo Campeonato Espanhol, terminou em tristeza, em decepção, em uma vontade incontida de chorar diante das cenas de racismo contra o craque brasileiro Vinicius Junior. Esse é o relato da historiadora e pesquisadora paraibana Sylvia Brito, que é casada com o espanhol Carlos González e atualmente mora nos arredores da praça esportiva valenciana.
Era para ser uma tarde de alegrias e de emoções. De magia. De reencontro com o futebol. Não foi nada disso. Sylvia estava absolutamente empolgada com a possibilidade de ver o brasileiro em campo, de matar a saudade de alguma forma daquilo que lhe remete ao Brasil. Ela então não teve dúvidas. Chamou o marido e os dois foram juntos assistir à partida. Era a primeira vez dela num estádio espanhol, a primeira vez dele depois de 25 anos de ausência. Ambos deixaram o local sem vontade de voltar.
“Foi uma coisa muito impactante e chocante ver ‘pessoas normais’, que eu provavelmente cruzo no meio da rua, que são meus vizinhos, que eu convivo de forma indireta, talvez, mas que são extremamente racistas”, lamenta Sylvia.
O atacante brasileiro Vinicius Junior, do Real Madrid, aponta para torcedor do Valencia que proferiu insultos racistas contra ele no Estádio de Mestalla — Foto: José Jordan/AFP
A paraibana conta que o Mestalla completou 100 anos no sábado. E que, em paralelo a isso, o filho pequeno, Luis, vinha demonstrando um interesse crescente com o futebol. A partida contra o Real Madrid, portanto, serviria para um triplo objetivo: acompanhar toda a festa do jogo que marcava o centenário do estádio, ver Vini Júnior ao vivo, se sentir segura para levar o filho numa próxima oportunidade.
Assim, ela vestiu a sua camisa da seleção brasileira e rumou ao lado de Carlos para o estádio. “Tinha toda essa mística de estádio centenário. E, depois, era o Real Madrid, a gente estava do lado do estádio. Tínhamos que ir”, comenta ela.
De início, tudo corria bem. O casal estava empolgado, a festa era bonita, o clima convidativo. “O primeiro tempo foi bem bacana. Foi muito divertido”, relembra.
Mas, daí, veio o intervalo do jogo. E, no segundo tempo, o clima mudou de forma abrupta. “Eu fiquei muito sentida, muito retraída. Eu não estava acreditando no que eu estava vendo”.
O primeiro incidente grave do jogo foi registrado mais ou menos por volta dos 15 minutos do segundo tempo, mas a primeira paralisação efetiva foi registrada dez minutos depois. O principal foco de racismo vinha de um setor de arquibancada localizado por trás de um dos gols do estádio, mas Sylvia chama a atenção para uma outra questão: a falta de indignação do público em geral aos atos racistas.
“Tinha uma família ao meu lado, que parecia ser bem amistosa. Mas quando a confusão começou, todo mundo se exaltou. Começaram a xingar Vini”, lamenta. “Eu vi idosos, mulheres, crianças, pessoas de todas as idades babando, estirando dedo, um ódio que dava medo. Um racismo despudorado, recreativo. Pessoas que não tinham o menor pudor de se mostrar racistas”, descreve, ainda assustada.
Sylvia se diz em choque com o que viu. Quando Vini foi expulso, o estádio todo foi abaixo, comemorou. Ela, ao contrário, teve vontade de chorar:
“Eu não tenho mais vontade de voltar. Foi algo indefensável”, dispara Sylvia, que na saída do estádio ainda ouviu ofensas por causa de sua camisa da seleção brasileira.
Sylvia Brito conta que levou binóculos com o objetivo de ver as expressões dos jogadores de quem era fã, mas que no fim o equipamento serviu para ver de perto as expressões iradas dos racistas — Foto: Sylvia Brito/Arquivo Pessoal.
25 anos depois, a mesma realidade
Carlos González, que é espanhol e marido de Sylvia, fala com tristeza sobre o que viveu no domingo (21). Ele é natural de Vigo, no Norte da Espanha, mas desde muito novo mora em Valência. Quando tinha entre 13 e 14 anos, começou a gostar de futebol e, acompanhado do pai, passou a ir aos estádios espanhóis. Tinha uma predileção especial ao La Coruña e ao Valência e durante quatro temporadas acompanhou os jogos in loco.
Com o tempo, no entanto, o interesse foi diminuindo. E o motivo era o mesmo dos dias atuais: os seguidos cânticos racistas que eram testemunhados nos estádios de futebol do país.
“Eu comecei a ver o que eles faziam. Era um racismo muito desinibido. E alguns desses torcedores eu reconhecia do colégio, do bairro onde eu morava”, destaca Carlos, se referindo ao Yomus, ultra nazifascista do Valência que era responsável por esses cânticos racistas durante os jogos.
Foi isso o que fez Carlos deixar de frequentar os estádios. E assim permaneceu durante 1/4 de século. “Eu estou muito desconectado do futebol”, comenta.
Ele explica que, com os anos, foi desenvolvendo um ódio desse público torcedor fascista e nazista, principalmente porque havia pouca reação a isso. “Era considerado como algo inevitável”, critica, explicando o processo que fez ele “desistir” do futebol.
Anos atrás, contudo, a ultra Yomus foi banida dos estádios e os cânticos racistas começaram a diminuir. Aí chegou 2023: o interesse do filho, a empolgação da esposa, o crescente interesse com a situação do Valência, que nesta temporada luta contra o rebaixamento. Ele resolveu dar uma nova chance ao futebol, imaginando uma situação mais amistosa, se decepcionou novamente.
“Eu não fico surpreso com o que aconteceu, mas eu fico triste. Porque 25 anos depois de eu deixar de assistir futebol justamente por causa do racismo, eu testemunhei a mesma coisa”, lamenta.
De acordo com Carlos González, o crescimento de uma extrema direita na Espanha ajuda a explicar os casos de racismo que voltaram a ser registrados nos últimos meses. E em meio a esse movimento está o partido VOX, que defende pautas nacionalistas, anti-imigração e xenofóbicas. E que, inclusive, é apoiado pelo presidente da La Liga, Javier Tebas, que nos últimos dias minimizou os ataques contra Vini Júnior.
Carlos não acredita numa eventual vitória do VOX. Para ele, será sempre um partido minoritário, mas que no entanto tem o problema de introduzir uma “retórica fascista” em parcelas da população. Eles popularizam, segundo Carlos, teorias conspiratórias e xenófobas.
“Este racismo está muito ligado ao clima político. Porque o estádio de futebol se torna um lugar em que as pessoas de extrema direita se sentem mais livres para dizer essas coisas”, sugere.
Por fim, Carlos destaca que os ataques racistas não partiram de todo o estádio. Ainda assim, ele explica que é sabido por todos em Valência que o setor sul por trás do gol é onde ficam esses torcedores nazifascistas. E foi justamente de lá que partiram os ataques racistas.
“Estou seguro que todo mundo no estádio sabia que Vinicius estava sofrendo comentários racistas. Então o que me ofende é que as pessoas, mesmo sabendo disso, foram criticar Vinicius e não quem estava xingando-o”, finaliza indignado.
G1PB