Com estandes espalhados em pontos estratégicos, ações promocionais de grande alcance e o rosto carismático do jogador Hulk à frente das campanhas, as casas de apostas online marcaram presença de forma incisiva na edição de 2025 do São João de Campina Grande. Natural da cidade, o atacante tornou-se o embaixador simbólico da plataforma 7K Bet, patrocinadora oficial do evento, que este ano reuniu cerca de 3 milhões de pessoas entre 30 de maio e 6 de julho.
Muito além das bandeirolas, das quadrilhas e do forró, o Parque do Povo virou também vitrine para roletas digitais e estratégias de ativação mercadológica de alto impacto. A atuação da 7K Bet foi um exemplo claro. Instalação de camarotes exclusivos, brindes para o público e campanhas publicitárias ancoradas no apelo emocional de uma figura popular e local. Ao unir identidade regional e consumo, a marca buscou não apenas visibilidade, mas pertencimento.
Entretanto, essa presença crescente de casas de apostas em eventos tradicionais acende um sinal de alerta. O São João, símbolo da cultura nordestina e das relações comunitárias, começa a ser reconfigurado por interesses comerciais que vão além da simples exibição de marca. Sob o olhar do macromarketing, abordagem que investiga as interações entre práticas de mercado e estruturas sociais, é possível perceber um movimento de apropriação simbólica do patrimônio cultural para fins de legitimação institucional.
A ausência de regulamentação publicitária específica para o setor de apostas no Brasil agrava o cenário. Sem restrições claras quanto ao conteúdo, à linguagem ou ao público-alvo, essas campanhas ocupam livremente espaços destinados à convivência familiar, atingindo inclusive crianças e adolescentes. Naturaliza-se, assim, o jogo como uma prática cotidiana, envolta em estímulos de recompensa e promessas de ganho rápido.
Mais do que uma mudança estética, há uma transformação de valores. A festividade que historicamente celebrou religiosidade, solidariedade e herança cultural agora cede lugar à lógica do espetáculo comercial. A festa vira plataforma de captação de novos consumidores, e os sentidos culturais vão sendo substituídos por impulsos de consumo e entretenimento de risco.
Os organizadores e o poder público costumam justificar esse tipo de parceria com base na necessidade de financiamento. Sem aportes robustos de marcas dispostas a investir pesado, o evento perderia sua grandiosidade. Mas esse argumento abre uma discussão mais profunda. Quais são os limites éticos da presença comercial em manifestações culturais populares? É possível garantir a continuidade de grandes eventos sem comprometer seus significados sociais?
Enquanto algumas empresas investem em projetos alinhados à valorização da cultura e da economia criativa local, as casas de apostas preferem a via da superexposição. A campanha com Hulk representa isso com clareza. O apelo emocional é elevado ao máximo, o que, por outro lado, também oculta os riscos associados ao produto promovido.
Diante desse cenário, crescem os chamados por:
• Criação de regras específicas para o marketing de apostas em eventos populares, com foco na proteção de públicos vulneráveis
• Estudos que avaliem os impactos sociais e culturais da presença dessas marcas em ambientes tradicionais
• Modelos de financiamento que priorizem a preservação simbólica e comunitária das festas
• Ampla discussão pública sobre os papéis do Estado, das empresas e da sociedade na defesa do patrimônio imaterial brasileiro
O São João 2025 reafirmou seu lugar como uma das maiores celebrações do país. Contudo, também escancarou um conflito silencioso. O embate entre o valor cultural da festa e o interesse comercial crescente. Em uma era marcada pela monetização simbólica e pela lógica da atenção, a pergunta que se impõe é a seguinte: até que ponto estamos dispostos a negociar o sentido da cultura em nome de sua sobrevivência econômica?
Se o forró passa a dividir o palco com as apostas, o Brasil pode estar remodelando não só seus hábitos de consumo, mas também os próprios rituais com os quais celebra suas raízes. E, nesse processo, corre o risco de perder mais do que ganha.
Por Sandoval Martins